instante revisitado
E a imagem se formou aos meus olhos. Me possuiu, era a magia de segurar aquela caixa metálica. O olho mágico da minha porta para o mundo. O dia que realmente descobri que era ela. Mas para chegar aí, o conto inteiro se estenderia por mais de trinta e seis poses, as primeiras já eram um presságio quase sabido, mas o esconde-esconde da luz e sombra seduzia tal descoberta.
Horas antes dividia dois pesos no pescoço. De um lado a história dada do ecrã brilhante, do outro a caixa preta da imaginação. Racionalmente escolhia as cenas que cada uma iria fotografar, de um lado o fácil registro de passagem, do outro as palavras escondidas na paisagem. Focos díspares. Diria insensato. Fluir está para o olhar, assim como as asas estão para o voo. Peso demais faz o balão ceder e sem vista é sem verso. A poesia vem lá de onde o coração bate fora do corpo, preso a um instante de uma imagem e só volta a bater dentro dele quando a cortina fecha. Capturou. O espetáculo está ao alcance dos dedos, é apertar. E cada instante pede sua batida de coração. Simples. A resolução do dilema vestido de ruptura explícita vinha a superfície. Um segundo receoso para encorajar a despedida. O vômito visual do disparador abria espaço para o desafio das estrofes precisas. Recolhi a barreira artificial para olhar o mundo. Dali em diante era no negativo que os substantivos iriam se formar. Espiei devagar. Os cílios pousaram na moldura de onde tudo acontecia. Logo bateram como asas, ventaram. Era o mundo de verdade, como queria enxergar. A caixa metálica ficou leve. A correia se alçou assumindo as rédeas do que eu chamei de libertário. O primeiro clique foi a expectativa do sol nascente. Tímido para aparecer, mas no primeiro contato com a luz embriagou aquele céu, meu dia de solstício. O clarear da subsistência que arregalou os olhos. Caçava, como o gato que avançara na rolinha. Era a primeira foto, a metáfora do olhar e a animalidade da conquista do instante. Fui atrás do caçador. Saltava das folhagens um olhar que encarava a lente como quem protegia a presa. Mais algumas fotos e uma conversa com um estranho.
Os pelos do cão que se mesclavam com o chão renderam a próxima foto, assim como o homem repousando em sua moto, tranquilo como se nada tivesse visto sobre a caça que antecedera. Encontrei carros escondidos sob panos. Uma senhora a costurar no meio da rua, ao lado do marido, desviou o olhar, mas não a pose. O mecânico inflou a postura antes dos pássaros repousarem sobre as janelas. O reflexo das carpas do espelho d’água tremularam nos muros. O varal de roupas que trazia o mesmo tom em cada peça. A foto da cozinha que visitei sem ser convidado. Nem mesmo para o sono do senhor que repousava logo ao lado. O monge se recolhia e abriu a porta de seu sobrado. A aprendiz de cabeleireira arrumava atenta as mechas do manequim. Clareavam-se fotos. O estalar das engrenagens acompanhavam o polegar como num gesto automático à prontidão para caçar a próxima cena. Seduzido girava o filme, era a pose trinta e seis. Girava o filme, trinta e sete. Girava o filme. Ele não acabara. Girava. Rodara em falso. O coração dessa vez parava dentro do corpo, gélido, sozinho, sem imagens para se segurar. Foi um segundo para todas as fotos tiradas estalarem na mente como uma despedida. O primeiro filme teria sido apenas o sonho. A correia ficou pesada. O vento cessou. As fotos não estavam fisicamente guardadas na caixa da imaginação. Era apenas uma caixa metálica vazia.
Um espio avesso no olho mágico do mundo me traria atordoado um pensamento lúcido, como um facho de luz da manhã que quer tomar o céu. Interrompi o frio. Inspirei. As fotos ainda estavam em mim, tão vivas como as senti. A poesia era maior, percebi. E tinha aquele filme inteiro para sentir novamente. O encaixei para rodar verdadeiro. Tornei a fazer o mesmo caminho, só que ao contrário. Como um trilheiro que perdera no mapa o norte dos passos e precisava se reencontrar. Visitaria a pose trinta e seis, depois a trinta e cinco até a primeira. O gato estar ainda lá era algo que acendia a curiosidade do improvável. Caçaria não só as atmosferas das imagens vividas como também a memória sensível. As estrofes precisas escolheriam novas rimas. O clarear.
Tão cedo a pose trinta e seis tomou o lugar da um. As mechas do manequim ainda resistiam ao aprendizado da futura cabeleireira. Enquadramento parecido. Quando vou apertar o botão um presente. Uma menina vira protagonista da cena segurando um balão. Cliquei. A foto já interessante ganhara novas palavras. As próximas esperavam o mesmo elemento surpresa, só que não ganharam, pois novas fotos nem esperadas por aquele filme surgiram. O caminho de volta revelou uma nova porta e nela uma senhora a cozinhar. Orgulhosa me convidou a entrar para mostrar suas habilidades e lá estavam tais novas fotos a me esperar. Nenhum monge adentrou a sua casa, mas a luz do dia em outro horário se revelou diferente ao incidir no batente. O mecânico havia encerrado seu trabalho e no lugar um casal conversava alegremente. Despertos já estavam todos, até mesmo o cachorro que trocara o chão pelo banco. Os pássaros ainda repousavam na janela, assim como os carros a se esconder sob panos. Um déjà vu sentiu a senhora costureira ao me inclinar os olhos, que metódica continuava a alinhavar. Já não viam-se carpas, pois a nova luz não deixava translúcida a água, mas ao lado flores pitorescas me roubaram a atenção. Do gato me comovi, nem a presa nem o rastro, apenas a memória daquele olhar. Sentira todas as imagens, do desfoque ao foque, da lembrança aos sentidos, para finalizar o filme e suas imaginárias setenta e duas poses.
Quando escrevi este texto ainda não tinha revelado as fotos desse filme, mas é como se as tivesse segurado em mãos, como atmosferas que poderia tocar. Já não vejo mais o mundo pelo olho mágico, estou nele e em todos os instantes que escolhi visitar, revisitar. A imaginação se formou aos meus olhos.
Vivido em Chiang Mai, Tailândia – 8 de Maio de 2017